Abaixo trago um artigo publicado no Conjur, que é bem interessante, sobre o instituto da delação premiada, acho válido lermos, é importante um pensamento reflexivo de todos nós sobre os rumos que o uso desse instituto pode tomar e suas implicações na nossa cultura jurídica.
Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato
Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa
A “barganha e a justiça criminal negocial”, como manifestações dos
espaços de consenso no processo penal, vem (pre)ocupando cada vez mais
os estudiosos, mas também os atores judiciários. A tendência de expansão
é evidente, resta saber que rumo será tomado, se seguirá o viés de
influência do modelo norte-americano da plea bargaining; o italiano do patteggiamento; o prático-forense alemão (cuja implantação evidenciou o conflito do law in action com o law in books).
Ampliaremos o tímido (mas crescente) modelo brasileiro introduzido pela
Lei 9099/95 (transação penal e suspensão condicional) até chegar na
Lei 12.850/13 e a colaboração premiada. Que rumo tomar? Quais os
limites? Que vantagens e inconvenientes isso representa? São questões
importantes a serem ponderadas.
A expansão dos espaços de consenso
decorre de fatores utilitaristas e eficientistas, sem falar na evidente
incompatibilidade com o Princípio da Necessidade (nulla poena sine iudicio),
mas é uma realidade que se impõe diante da insuficiência estrutural do
poder judiciário (sustentam os defensores do viés expansionista). Mas a
aceleração procedimental pode ser levada ao extremo de termos uma pena
sem processo e sem juiz? Sim, pois a garantia do juiz pode ficar
reduzida ao papel de mero ‘homologador’ do acordo, muitas vezes feito às
portas do tribunal (nos Estados Unidos, acordos assim superam 90% dos
meios de resolução de casos penais).
A negotiation viola
desde logo o pressuposto fundamental da jurisdição, pois a violência
repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional e tampouco
se submete aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do
Ministério Público e submetida à sua discricionariedade. Isso significa
uma inequívoca incursão do Ministério Público em uma área que deveria
ser dominada pelo tribunal, que erroneamente limitase a homologar o
resultado do acordo entre o acusado e o promotor. Não sem razão,
afirma-se que o promotor é o juiz às portas do tribunal.
O pacto
no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que
transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar
autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência,
obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de
tratamento e insegurança. O furor negociador da acusação pode levar à
perversão burocrática, em que a parte passiva não disposta ao “acordo”
vê o processo penal transformar‑se em uma complexa e burocrática guerra.
Tudo é mais difícil para quem não está disposto ao “negócio”.
O
acusador público, disposto a constranger e obter o pacto a qualquer
preço, utilizará a acusação formal como um instrumento de pressão,
solicitando altas penas e pleiteando o reconhecimento de figuras mais
graves do delito, ainda que sem o menor fundamento.
A tal ponto
pode chegar a degeneração do sistema que, de forma clara e inequívoca, o
saber e a razão são substituídos pelo poder atribuído ao Ministério
Público. O processo, ao final, é transformado em um luxo reservado a
quem estiver disposto a enfrentar seus custos e riscos, conforme a
doutrina de Ferrajoli.
A superioridade do acusador público,
acrescida do poder de transigir, faz com que as pressões psicológicas e
as coações sejam uma prática normal, para compelir o acusado a aceitar o
acordo e também a “segurança” do mal menor de admitir uma culpa, ainda
que inexistente. Os acusados que se recusam a aceitar a delação ou
negociação são considerados incômodos e nocivos, e sobre eles pesarão
todo o rigor do direito penal ‘tradicional’, onde qualquer pena acima de
4 anos impede a substituição e, acima de 8 anos, impõe o regime
fechado.
O panorama é ainda mais assustador quando, ao lado da
acusação, está um juiz pouco disposto a levar o processo até o final,
quiçá mais interessado que o próprio promotor em que aquilo acabe o mais
rápido e com o menor trabalho possível. Quando as pautas estão cheias e
o sistema passa a valorar mais o juiz pela sua produção quantitativa do
que pela qualidade de suas decisões, o processo assume sua face mais
nefasta e cruel. É a lógica do tempo curto atropelando as garantias
fundamentais em nome de uma maior eficiência.
No Brasil, a
tendência de expansão é evidente e a preocupação, crescente. Dos limites
tímidos da transação penal e suspensão condicional do processo, caímos
no outro extremo: o amorfismo da colaboração (leia-se: delação) premiada
e a Lei 12.850/13.
Essa semana foi noticiada uma sentença penal
condenatória na operação “lava a jato” em que alguém — beneficiado pela
delação premiada (ou seja, pena negociada) — é condenado a 15 anos e 10
meses em regime de “reclusão doméstica” ou “prisão domiciliar”. Depois
vem um regime “semiaberto diferenciado”(??) e uma progressão para o
regime aberto após dois anos. Tudo isso sob o olhar atônito do Código
Penal, que não se reconhece nessa ‘execução penal a la carte’.
Mas isso é outro Direito Penal? Com certeza. E outro processo penal também.
Mas
o que é esse “outro”? A serviço de quê(m) ele está? Quais seus limites
de incidência? Por mais que se admita que o acordo sobre a pena seja uma
tendência mundial e inafastável, (mais) uma questão que preocupa muito
é: onde estão essas regras e limites na lei? Onde está o princípio da
legalidade? Reserva de lei? Será que não estamos indo no sentido
negociação, mas abrindo mão de regras legais claras, para cair no erro
do decisionismo e na ampliação dos espaços indevidos da
discricionariedade judicial? Ou ainda, na ampliação dos espaços
discricionários impróprios do Ministério Público? Fico preocupado, não
apenas com banalização da delação premiada, mas com a ausência de
limites claros e precisos acerca da negociação. É evidente que a Lei
12.850/13 não tem suficiência regradora e estamos longe de uma definição
clara e precisa acerca dos limites negociais.
A delação premiada,
enquanto forma de consenso sobre a pena, precisa ser objeto de uma
problematização muito mais complexa (para além da simples recusa, pois
ela está aí), como por exemplo:
a) Quais os limites quantitativos e
qualitativos acerca da pena? Como fixar uma pena de 15 anos em regime
de prisão domiciliar? E as penas acessórias? Qual o critério para
fixação dos valores (milionários) a serem restituídos (ou pena
pecuniária)?
b) Até que momento pode ser efetivada? Apenas na fase
pré-processual? Após a denúncia mas antes da instrução? A qualquer
momento (então não haverá a aceleração procedimental característica)?
c) Que consequências procedimentais ela gera em termos de aceleração e limitação da cognição?
d)
Uma vez feita, mas por qualquer motivo não efetivada ou descumprida,
como vamos lidar com a confissão já realizada? E o pré-julgamento, como
fica? O juiz que teve contato com a confissão/delação deve ser afastado
ou continuaremos com a ilusão de que não há quebra da imparcialidade, de
que o juiz pode dar um rewind e deletar o que ouviu, viu e leu?
e)
Nos casos penais de competência do tribunal do júri, como se dará o
julgamento? Haverá júri e os jurados poderão não homologar a delação? E a
íntima convicção, como fica? Haverá quesitação sobre a delação? Ou com a
negociação usurparemos a competência do júri?
f) Havendo
assistente da acusação, poderá se opor a negociação sobre a pena? Qual o
espaço da vítima no ritual negocial? Ela poderá estabelecer ‘condições’
ou será ignorada (como ocorre na transação penal oferecida pelo
Ministério Público nas ações penais de iniciativa privada)?
g) Existe um “direito” do imputado ao acordo ou ele é um poder discricionário do Ministério Público?
h)
Qual o nível e dimensão de controle jurisdicional feito? Qual o papel
do juiz no espaço negocial sem que ele deixe de ser ‘juiz’ (ou seja,
imparcial)?
Muitas são as perguntas não respondidas pelo sistema
jurídico brasileiro, chegando-se a uma elasticidade absurda (e
decisionismo igualmente absurdo) de fixar uma pena de 15 anos de
reclusão a ser cumprida em regime de recolhimento domiciliar,
absolutamente fora de tudo o quem temos no Código Penal brasileiro.
Mas,
antes de pensarmos que ‘legislar’ é a solução para tudo isso, faço mais
um questionamento: já foi elaborado um sério e profundo ‘estudo de
impacto carcerário’ da expansão do espaço negocial? A expansão da
possibilidade de concretização antecipada do poder de punir por meio do
reconhecimento consentido da culpabilidade, não representará um aumento
significativo da nossa já inchada população carcerária? Como o sistema
carcerário sucateado e medieval que temos irá lidar com isso? Pois é,
parece que mais uma vez legislaremos primeiro, para ver o que vai
ocorrer depois...
Dessarte, estamos entrando — sem muito rumo ou
prumo — em terreno minado, (em grande parte) desconhecido e muito
perigoso para o processo penal democrático e constitucional.
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Aury Lopes Jr é
doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito
Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é
juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de
Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na
Univali (Universidade do Vale do Itajaí).